terça-feira, 28 de junho de 2011


A PROCURA
Ele deitou-se na rede para ver o dia amanhecer, iluminando com os primeiros raios de sol, aquele lindo mar azul. Encostou a cabeça na almofada de plumas e o cheiro do mato molhado invadiu-lhe as narinas. Sentia-se apático.
Morava distante do centro urbano, meio isolado, envolto pela mata exuberante. A pessoa que morava ao seu lado, dividia com ele o mesmo teto, era tão estranha quanto alguns viandantes, que vez ou outra circulavam por ali. Um passo em sua direção, quebrando o silêncio de seus pensamentos e em seguida o canto de um pássaro, devolvendo-lhe a tranqüilidade que buscava. A casa vermelha tingia a mata, o concreto misturava-se com as árvores. Tempos atrás havia apenas a mata verde, mais tarde ele construíra sua casa vermelha, rompendo com o silêncio absoluto da mata. Era uma casa ampla, garbosa, com janelas para o mar, diferente das casas pequenas, sem cor que existiam nos arredores.
Os pescadores e caiçaras que moravam na praia costumavam reunir-se para retirar mexilhões de suas fazendas marinhas, as crianças todas descalças, numa harmonia homem-natureza, que dava certa inveja. Saíra da selva de pedra em busca de alento, de paz, mas a inquietude havia descoberto seu refúgio. Fitava as crianças das famílias caiçaras, os mais velhos já não mais brincavam, ajudavam os pais, os menores divertiam-se com as conchas dos mexilhões, com as quais inventavam carros, animais. Ele divertia-se com aquela cena. Apesar de tudo, considerava-se um privilegiado.
Seus pais moravam na selva de pedra, mas estavam bem. Ele já não sabia a quanto tempo isso acontecera, talvez há muito tempo; ele tinha mudado há dez anos. Tudo se modifica, pensou. No instante seguinte sentiu como se nada houvesse mudado, aquele desejo de viver intensamente ainda pulsara em sua alma, fazia seu corpo vibrar, seu coração disparava. Percebeu que mudara para encontrar a paz, a fleuma, mas sua alma permanecera desassossegada, pulsando, em busca da plenitude, do apogeu. Agora era o momento de decidir, sair em busca de sua felicidade ou permanecer naquela estória plagiada de um conto, que não era seu... Voltou-se para seus pensamentos, que o mantinham distante. Distante daquela pessoa estranha com quem dividia a casa vermelha.
Casa! Passou os olhos pela sala, fitou os móveis, todos continham uma estória, de sua família ou dele mesmo, comprado em uma viagem, com marcas de um romance que outrora viveu. Durante tantos anos foram testemunha de um amor, que parecia ter findado. Tocou cada objeto, talvez jamais voltaria a ver aqueles moveis, ou a estória que representavam deixaria de ser lembrada por ele, e novas estórias passariam a vivenciar. Quem sabe um novo amor, daquele capaz de tirar-lhe o fôlego, de levá-lo ao devaneio, todo amante é capaz de loucuras. Como quero viver algo intenso, pensou.
Contudo, olhando o mar através das imensas vidraças da casa vermelha, durante todos aqueles anos ele nunca se deu conta de que o amargo que as vezes sentia em sua boca, era a ânsia de ser feliz, queria estar apaixonado, insano de amor. Nunca iria saber se era capaz de provocar noutra mulher aquele sentimento, enquanto vivera ali, ao lado de uma mulher que num tempo distante, havia provocado essa paixão, no entanto, tornara-se uma amiga. Olhou as fotografias, reviveu os principais momentos de sua vida, lembrou de suas viagens pelo mundo, de seu casamento, de sua família. Pensou nos filhos que não teve. As fotos estavam amareladas, não tinham cor. As telas que pintavam as paredes da sala, agora para os seus olhos retravam flores em preto e branco, talvez isso representava muito do que estava vivendo. Decidiu ir até a varanda e certificar-se que a casa ainda era vermelha. E de repente, percebeu que o céu azul, que os primeiros raios de sol iluminara estava cinza, escuro. Pensou:
— Preciso me reencontrar, buscar a paz.
Decidira deixar a falsa estabilidade daquele casamento, em busca da felicidade. Será que estava sendo sensato? Já não era um jovem, inconseqüente, ponderou, analisou cada lado da questão. Tinha alguém que o amara, que vivia para ele, dedicara seu tempo exclusivamente para fazê-lo feliz, contudo isso o sufocara, e nada mais. Vivia cercado de conforto, muitos pobres desgraçados sentir-se-iam feliz por ter aquela comodidade. Ele não. Nada tinha tanta importância quanto sentir-se feliz É bem verdade que trabalhara muito para alcançar aquele status. O que diriam os amigos, quando soubessem que ele abandonara a casa em busca da felicidade? Que era um imaturo e aventureiro, talvez. E aquela pessoa com quem dividira tantos anos de sua vida, como iria sentir-se? Sempre tão inconstante, mas especialmente entregue a ele. Ele derramaria muitas lágrimas por deixar tudo aquilo, era como se um castelo de sonhos ruísse.
Em sua nova realidade, distante e desconhecida, tudo seria diferente. Estaria sozinho — ele. As pessoas continuariam o tratando com respeito e admiração? Não seria tratado como um inconseqüente que abandonara o lar em busca de uma aventura? Mesmo agora, que estava com mais de quarenta anos, sentia-se às vezes amea¬çado pela incerteza de seus desejos. Sabia qual era a causa daquelas inquietações. Quando era mais jovem, ele já havia pensado em deixar tudo e sair em busca de sua felicidade, ele nunca havia tido coragem, porque acreditava ou acovarda-se achando que a estabilidade daquele casamento era mais importante do que o desejo pulsante da paixão, da felicidade. E agora não havia mais motivos para temer. Os sentimentos alimentados por aquela doce estranha, era de amizade, uma certa gratidão. Seu corpo muitas vezes estava presente naquela relação mais seus pensamentos e desejos, estavam distantes. Era quase um sacrifício, buscar inspiração para manter uma relação desgastada, sem paixão.
Além do mais, a perseguição era constante, não tinha um minuto de sossego, havia as crises intermináveis, com discussões que estendiam-se noite a dentro. Toda semana, havia uma noite, às vezes, duas ou mais em que as discussões eram uma constante, aquilo o deixava exausto, exauria suas forças, mais do que qualquer outra coisa. Ele sempre se deixava manipular, entregava-se aos caprichos e imposições daquela que já nem mais era sua amada. Não conseguia impor suas vontades, seu desejo de liberdade, mesmo que respeitasse aquele casamento, precisara sentir-se livre, para alçar vôos, mesmo que controlados pela vigilância constante.
Lembrou-se de suas caminhadas matutinas com seus cães, pela mata que circundava sua casa vermelha, quase sempre invadidas pelos gritos de sua companheira, que por medo o chamara, para ter certeza de que não teria sido daquela vez, que ele a abandonara. Percebeu que nunca havia compreendido os gritos, mas naquele momento era tão evidente, o medo da distância, talvez ela soubesse que ele não mais a amava. Contudo, acabava respondendo-lhe e sabia que era um alento para ela, ouvir sua voz. Então ele cedia e voltava rápido para casa, deixando na mata seus pensamentos, sua liberdade, sua busca por si mesmo. Voltava e resmungava baixinho para seus cães o inferno que era sua vida, depois pedia perdão, porque era privilegiado e não podia reclamar da vida que vivia.
Trabalhava em sua própria empresa, para manter-se ocupado e divertir-se um pouco, era um bom motivo para estar longe de casa, mesmo que fosse sob vigilância. Dava-lhe todas as oportunidades para que ela buscasse algo que lhe desse prazer, que a fizesse feliz, mas parecia que a felicidade dela era estar presente em cada movimento que ele fizera, como se quisesse misturar-se em seu pensamento. O traba¬lho era um momento de calmaria, mas agora que estava prestes a deixar tudo para trás...
Estava prestes a começar tudo novamente, a reescrever sua estória, a explorar outra vida ao lado de outro alguém, ou talvez, por algum tempo, ao lado dele mesmo. Já existia outra pessoa, era alguém por quem havia se apaixonado. Mas percebia que certas atitudes o incomodavam, levando-o a indagar-se sobre sua escolha. Procurava pela paz, pela harmonia, queria sentir-se livre, seria ao lado de outra pessoa, em que identificara atitudes que lhe causava desconforto? Pensou na solidão que buscava na mata, e que tanto bem lhe fazia, seria ele capaz de viver só?
Percebeu que sua procura não havia terminado, mas que o primeiro, e talvez mais difícil passo, por ele havia sido dado. Concordara em abandonar aquela vida e buscar sozinho ou com outro alguém, sua felicidade. Viver uma outra estória, no mesmo cenário, mas com personagens diferentes, ele mesmo seria um novo personagem mais dono de si, não tão submisso as necessidades dos outros. Com mais certeza de seus desejos, de suas limitações e de seus sentimentos
Com que nitidez se recordava da primeira vez em que a vira! Ela era tão linda. Tudo parecia ter acontecido há apenas alguns dias: ele apaixonado esperando-a para selarem seu amor sob as bênçãos do padre, e agora tudo era tão distante. E lá estava ele, novamente apaixonado, até quando? Como seria aquele novo amor? Estaria ele fazendo a escolha certa? Antes de encerrar aquela estória já estava envolvido noutra, como se elas se misturassem, e em alguns momentos misturavam-se mesmo. Algumas comparações eram inevitáveis, seria o começo de uma nova estória, ou a continuação da mesma, apenas mudando a atriz principal?
Ele estava se sentido como um jovem inconseqüente capaz de muitas loucuras para desfrutar de alguns momentos com sua amada, mas em alguns momentos indagava-se sobre a intensidade daquele sentimento. Se percebia os defeitos que o incomodavam, estaria tão apaixonado? Quando se ama as qualidades superam os defeitos, as diferenças, então por que as via com tanta nitidez? Seria um sentimento desesperado para libertá-lo daquela relação fracassada?
A chuva caia no telhado. Olhou a vidraça e as gotas de chuva que caiam, pensou na tempestade que se formara sobre o mar. Há poucas horas o sol iluminava aquele imenso azul, agora nuvens negras, vento e chuva. Exatamente como seu coração, iluminado pelos raios da paixão, e numa tempestade de incertezas e inseguranças que o desconhecido apresentara. Ao contrário do que pensara, as pessoas notavam que estava enamorado e, sempre que ele voltava de suas escapadelas amorosas sua companheira percebia a euforia que vibrava em seu olhar. Como teria sido tolo acreditando ser possível ludibriar alguém que o conhecera tão bem. De certo a magoou incessantemente com suas mentiras previsíveis. Ele muitas vezes referia-se a ela com carinho, respeitava os anos de convivência, mesmo que não tivessem sido felizes.
Ela em tempos passados o fizera feliz, era cúmplice, parceira. E o que ele realmente sabia daquela nova pessoa, com quem estava? O quanto conhecia de sua história, como poderia ter se doado tanto, o que estava ele fazendo com sua vida? Entregando-se a alguém, sem medir as conseqüências. Ele deveria entregar-se a si mesmo. O que procurava era se encontrar. Parou, fitou-se na vidraça molhada pela chuva e viu sua imagem que se desfigurava a cada gota que escorria. Percebeu que não conseguira encontrar-se ainda, a procura continuava.
A noite chegara. O reflexo da lua sobre o mar. Um copo de vinho, a lenha queimando na lareira, velas acesas, era para ser uma noite romântica, mas ele já não mais era capaz de mentir. Às vezes, ele conseguia ser agradável.
Estava chegando a hora, mas ele continuava mergulhado na imensidão do mar, com os olhos fixos no luar, sentindo o cheiro do mato, fitando os moveis, relembrando sua estória. Lá embaixo na praia havia uma música tocando. Conhecia a canção. Estranho ouvir aquela música tocando, logo quando decidira terminar tudo. Como que para lembrá-lo da promessa que fizera defronte ao padre, sob as bênçãos da igreja. Lembrou-se da noite em que a vira pela primeira vez. Relembrou dos momentos felizes e tristes, das viagens, das comemorações, das surpresas, e mergulhou nas suas lembranças, pensamento distante, olhar a contemplar o luar.
Virou-se num sobressalto, ao ser levemente tocado. Pensou em fugir, queria que aquele momento não existisse. Fugir! Como minimizar o sofrimento que iria provocar? Daria carinho a ela, talvez, quem sabe, até a amaria. E ela queria ser amada, por ele. Por que haveria de terminar tudo? E pensou: Tenho direito à felicidade. Ele a abraçaria e a consolaria.
Lá estava ela no meio da sala ampla. Vestida para seduzi-lo e ele mergulhado no desejo único da separação. Na separação de corpos, porque para ele a separação já era uma realidade havia muitos anos. Ela acariciava seus cabelos e ele sabia que estava chegando o momento de findar com a aquela estória. Sentiu um arrepio que percorreu todo seu corpo, não era de prazer, era pavor. A lua estava linda, deixava um rastro de luz sobre o mar, ela relembrou algumas noites em que ficaram fitando o luar. Ele sentiu-se incomodado, não queria relembrar dos bons momentos, apenas das brigas e discussões, precisara de motivos para justificar sua decisão. Estava aflito, seu rosto seguramente, estava pálido, sem cor. Sentiu outro calafrio, pediu aos céus que o guiasse, mostrando o caminho a percorrer, sem que provocasse muito sofrimento.
A névoa encobriu a lua, o vento soprou e fez tilintar o sino na varanda. Se partisse, amanhã estaria nos braços de seu novo amor, livre para viver sua vida como desejava. Pensou em desistir e continuar vivendo essa estória. Pensou como falaria isso para sua nova amada, entenderia ela sua angústia? Seria possível sentir-se livre estando com outro alguém? Sentiu uma grande aflição, que chegou a provocar-lhe náuseas. Novamente pensou sobre quem era aquela nova amada, uma mulher como a sua, que viveria para ele, com atitudes que o incomodavam. Seria aquilo que sentia amor, ou uma tórrida paixão que aos poucos transformar-se-ia em dependência? Gostara ele de mulheres frágeis e dependentes, que ele pudesse controlar. Ficava a falsa sensação de controle, porque as mulheres dependentes são manipuladoras, ele sabia disso. Por que nunca quis ter ao seu lado uma mulher independente, de personalidade forte? Por que? Talvez, porque necessitava sentir-se no controle. Como faria com uma mulher que não dependesse dele, que decidisse por si, sem participá-lo de suas decisões? Não, ele não suportaria.
Seu coração disparou. Percebeu que ela o admirava. Segurou-a pela mão e disse:
- Temos que conversar.
Todos os medos do mundo invadiram sua alma. Seu coração estava descompassado, sua mente inquieta, seu corpo trêmulo. Ela estava calada, aguardando que ele falasse. Abraçou sua companheira e a convidou para mais uma taça de vinho.
Não! Era impossível fazer aquilo. Suas mãos estavam suando, estava em desespero, acreditou que não era o momento certo. Será que haveria um momento certo?
Ele ausentou-se da sala por um momento e ligou para sua amada. Do outro lado da linha uma voz eufórica. Não! Ele não havia conseguido. Ela gritara decepcionada, precisava pressioná-lo, queria que estivesse livre, precisava dele. Ele retrucou dizendo que precisara de ajuda, não poderia fazê-la sofrer, tinham uma estória juntos. Do outro lado silêncio, ela havia desligado. Uma mulher sabe como deixar um homem inseguro, e ela havia conseguido. Voltou para a sala, estava hipnotizado, não conseguira ouvir nada do que ela dizia, estava tão distante. Seu coração estava assombrado. Ela o olhava apaixonada, ele estava passivo. Seus olhos não demonstra¬vam qualquer sinal de amor, ele respirou profundamente, como se o ar fosse lhe trazer a calmaria. E decidiu que sua procura havia se findado, ele encontrará a resposta. Sabia o que queria...